Porque ensurdecemos com a idade?

O envelhecimento do sistema auditivo.

A audição desempenha importantes funções no relacionamento do individuo com o mundo, é um veículo de comunicação através da fala, é um sistema de alerta para eventos ameaçadores que ocorram fora do campo visual e tem uma vertente estética importante, como a apreciação da música ou da natureza envolvente. Sendo assim, a perda da audição tem consequências profundas ao nível social, funcional e psicológico da pessoa. No entanto, a perda auditiva é de todas as alterações sensoriais do envelhecimento aquela que é mais esperada e melhor aceite pelo cidadão comum (Gates et al., 1990).
A perda auditiva no envelhecimento, designada por “presbiacusia”, é uma entidade comum e a sua gravidade e prevalência aumentam com a idade.

Anatomofisiologia do sistema auditivo

O sistema auditivo tem como função transmitir e transformar as ondas sonoras em sinais eletrofisiológicos, que são localizados e interpretados pelos centros auditivos centrais. Este processo é constituído por várias etapas ao longo do sistema auditivo. O ouvido externo, constituído pelo pavilhão auricular e pelo canal auditivo externo, tem como função conduzir o som à membrana do tímpano e amplificar as frequências entre os 2 e os 5 kHz (fig. 1). O ouvido médio, formado pela caixa do tímpano, a membrana do tímpano e pela cadeia ossicular, tem como função transmitir as ondas sonoras do meio aéreo para o meio líquido do ouvido interno e aumentar a pressão acústica neste último (fig. 1). Este efeito é conseguido através do efeito de alavanca da cadeia ossicular e da diferença de área entre a membrana do tímpano e a platina do estribo, obtendo-se um ganho de pressão acústica multiplicado por 17 (Zwislocki, 1981).

Fig.1 – O ouvido é constituído por 3 partes: O ouvido externo (E) e o ouvido médio (M) asseguram a transferência das ondas sonoras ao ouvido interno (I), mais precisamente à cóclea, que transforma este estímulo em mensagem nervosa.

Imagem by S. Blatrix from “Promenade around the cochlea” EDU website http://www.cochlea.org *, by R. Pujol et al., INSERM and University Montpellier.

A transformação da energia mecânica da onda sonora em sinal electrofisiológico faz-se na cóclea. As vibrações da platina do estribo são transmitidas à perilinfa (líquido do ouvido interno) que colocam em vibração a membrana basilar do ducto coclear. Por sua vez, as vibrações da membrana basilar são transmitidas às células ciliadas colocando em movimento os seus cílios que, ao serem defletidos, provocam a abertura de canais iónicos, com a entrada de potássio, que causa a despolarização celular (Fig. 2). Esta despolarização da célula ciliada interna provoca a libertação do neuromediador glutamato na sinapse com o 1º neurónio da via auditiva, resultando na formação do sinal nervoso. São as variações das propriedades mecânicas da membrana basilar e das propriedades mecano-elétricas das células ciliadas ao longo do comprimento da cóclea que permitem a deteção de diferentes frequências sonoras. As frequências graves são descodificadas próximo ao ápice e as agudas junto à base (Dallos, 1981; Fettiplace and Hackney, 2006).

Fig.2 – Esquema representando o órgão espiral (de Corti) da cóclea onde se processa a transdução das ondas sonoras em mensagem nervosa.
1 – Célula ciliada interna, o verdadeiro receptor auditivo.
2 – Células ciliadas externas, o “amplificador” coclear.

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Finalmente, a via auditiva central, constituída por diferentes núcleos de neurónios e de fibras nervosas, ao longo na ponte, mesencéfalo e diencéfalo, veicula e trata o sinal eletrofisiológico para o levar até ao córtex auditivo primário, localizado no lobo temporal do cérebro, onde se processa a interpretação dos sons (Fig. 3).

Para mais informação, consulte o sítio Internet “viagem ao mundo da audição” em www.cochlea.org

Fig.3 – Esquema da via auditiva central.

Imagem by S. Blatrix from “Promenade around the cochlea” EDU website www.cochlea.org*, by R. Pujol et al., INSERM and University Montpellier

Fisiopatologia da surdez do envelhecimento

Têm sido descritas alterações do mecanismo de transmissão do som atribuíveis ao envelhecimento, como, por exemplo, estenose da porção cartilaginosa ou óssea do canal auditivo externo, endurecimento da membrana timpânica e da cadeia ossicular (Belal and Stewart, 1974). No entanto, estas alterações raramente têm impacto significativo na audição.

A “presbiacusia”, perda progressiva, bilateral e simétrica da audição associada à idade, é a forma mais comum de apresentação da surdez do idoso (Gates et al., 1990). Esta perda auditiva atinge inicialmente as frequências agudas, progredindo para as frequências médias e graves com o avançar da idade.

A etiologia da “presbiacusia” não está completamente esclarecida, existindo múltiplos fatores a concorrer para ela. Hawkins descreveu uma equação que atribui a etiologia da “presbiacusia” ao somatório das lesões ototóxicas ao longo da vida, mais o somatório das lesões sonotraumáticas, mais o somatório do tempo (Fig.4) (Hawkins, 1973). As células ciliadas surgem no primeiro trimestre de vida intrauterina e têm de sobreviver durante toda a vida do indivíduo, pois não existe regeneração das células ciliadas. Como existe pouca redundância de células ciliadas e como cada região da cóclea codifica diferentes frequências, a perda de células sensoriais ao longo da vida resulta num impacto significativo na audição da pessoa (Schuknecht and Gacek, 1993). A incapacidade de regeneração das células ciliadas é comum às células ciliadas internas, verdadeiros recetores auditivos, e às externas, responsáveis pelo mecanismo ativo de amplificação e seletividade frequencial da cóclea. Sendo assim, vai-se perdendo tanto a capacidade de captar o som, como a capacidade de discriminação frequencial (Johnsson and Hawkins, 1972; Schuknecht and Gacek, 1993; Chisolm et al., 2003).

Fig.4 – Equação de Hawkins, representando os diferentes fatores etiológicos da presbiacusia.

A estria vascular, localizada na parede lateral do canal coclear, segrega endolinfa rica em potássio, responsável pelo potencial endococlear (Offner et al., 1987). A disfunção desta estrutura, devida a lesão do epitélio e dos vasos, provoca hidropsia endolinfática e alterações da transdução das células ciliadas (Schuknecht and Gacek, 1993).
Ao nível coclear, também há alterações da condução das vibrações sonoras devidas à alteração das propriedades elásticas da membrana basilar, da articulação da platina do estribo com a janela vestibular (oval) e da membrana timpânica secundária (Schuknecht and Gacek, 1993).
Por outro lado, cada célula ciliada interna está conectada com núcleos cocleares do tronco cerebral através do neurónio auditivo primário. Estes neurónios também não têm capacidade regenerativa, pelo que a sua perda resulta na diminuição das aferências ao longo da via auditiva central (Johnsson and Hawkins, 1972).
Ao nível dos núcleos da via auditiva central, verifica-se a diminuição do número de neurónios, do seu tamanho e alterações neuroquímicas que, no seu conjunto, resultam na diminuição da capacidade do sistema nervoso central de processar a mensagem auditiva (Pichora-Fuller and Souza, 2003).
As doenças sistémicas que acompanham o envelhecimento como a arteriosclerose, a hipoxia, a diabetes, as alterações metabólicas renais e hepáticas têm influência negativa sobre as estruturas auditivas (Gates and Mills, 2005).
A base genética da “presbiacusia” é difícil de provar, pois as pessoas estão expostas a múltiplas outras agressões ao sistema auditivo durante a vida. No entanto, começa-se a reunir evidências que apontam para uma predisposição genética para a “presbiacusia” e a suscetibilidade para as agressões externas (Gates et al., 1999). Estas suscetibilidades parecem estar relacionadas com o DNA mitocondrial .

Apresentação clínica

Inicialmente, os sintomas de “presbiacusia” são discretos, aumentando progressivamente, mas de forma não linear e muito variável, à medida que a idade avança (Gates and Mills, 2005). A média da perda auditiva das pessoas que procuram ajuda é de 45 dB (Gates et al., 1990). Mais do que notarem surdez, estes pacientes começam por referir dificuldade em entender as conversas em ambiente ruidoso ou quando mais do que uma pessoa fala ao mesmo tempo (Humes, 1996; Gates et al., 2000). Esta dificuldade parece ser devida à perda de células ciliadas na espira basal da cóclea, responsável pela codificação das frequências agudas, importantes na discriminação das consoantes e do fim das palavras, interferindo na compreensão do discurso.
O aparecimento de um acufeno (zumbido) é frequente nestes doentes, sendo particularmente incómodo em ambiente silencioso (Moller, 1984; Gates and Mills, 2005).
O audiograma tonal mostra uma perda auditiva nas frequências agudas (4 e 8 kHz) que vai progredindo para as frequências médias e graves, à medida que a doença avança (Gates and Mills, 2005). (Fig.5)

Fig.5 – O audiograma tonal representa a perda auditiva nas diferentes frequências observadas ao longo da vida. No audiograma vocal ilustra-se a perda da discriminação da palavra. Curva azul – normal, curva vermelha – presbiacusia.

Imagem by S. Blatrix from “Promenade around the cochlea” EDU website www.cochlea.org *, by R. Pujol et al., INSERM and University Montpellier.

O conjunto das alterações auditivas apresentadas anteriormente acaba por resultar em dificuldades em desempenhar tarefas quotidianas, como conduzir, interagir num ambiente social e mover-se no meio físico envolvente, podendo ser causa de limitação funcional, isolamento social e depressão.
Não se deve subestimar o efeito de uma surdez num quadro de deficiência cognitiva. Por um lado, uma surdez não corrigida torna difícil ou impossível a valorização de testes cognitivos, normalmente dependentes da comunicação verbal, e a deficiência cognitiva torna difícil uma avaliação auditiva correta. Por outro, a surdez é um fator importante a contribuir para o declínio da função cognitiva (Lindenberger and Baltes, 1994; Gates et al., 1995; Gates and Mills, 2005), havendo quem afirme que as deficiências sensoriais são causa determinante da disfunção cognitiva, devido à falta de estímulo sensorial sobre as áreas cognitivas, causando a sua degradação (Gennis et al., 1991; Lindenberger and Ghisletta, 2009).

Tratamento da perda auditiva do envelhecimento

O tratamento dos doentes com “presbiacusia” não se pode centrar apenas na colocação de uma prótese auditiva para amplificar o som, pois, pelo que foi descrito atrás, não se trata apenas de uma dificuldade do som chegar ao recetor, mas, sim, uma deficiência do próprio recetor, das vias que o conectam ao cérebro e do próprio córtex auditivo. Assim, para além da amplificação, é necessário ensinar estratégias que ajudem a ultrapassar as limitações no desempenho de atividades diárias, da locomoção e do relacionamento social (Erber, 2003; Howarth and Shone, 2006).

Bibliografia

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