A Amizade faz bem

Um medicamento estupendo

Abordar a temática da amizade, numa perspetiva de saúde, parece uma temática fora de contexto, tendo em conta os avanços da medicina em múltiplas áreas. Os saberes e as técnicas são absolutamente vertiginosos e, num ápice, a nossa saúde fica consideravelmente melhor, dependendo de um conjunto de habilidades, medicamentos, procedimentos e normas orientadoras, sendo estas, aparentemente variáveis independentes de qualquer conceito de amizade.

Na ordem dos dias de todos, estão as notícias sobre o Covid-19, nomeadamente a imagética dos nossos concidadãos ligados a equipamentos sofisticados nas Unidades de Cuidados Intensivos e técnicos de saúde em estado de exaustão. Ficamos emocionados e impressionados com essas imagens que vêm acompanhadas por números e taxas assustadoras de vidas perdidas e tantas pessoas a necessitar de cuidados. Invadem-nos sentimentos de medo que estacionam efemeramente dentro de nós, para, poucos minutos depois, denegarmos e, quiçá, arriscarmos até atitudes e comportamentos que fazem perigar o próprio e o outro. Um assomo do valor da vida, que nos toca e se dilui.

A amizade está assim muito próxima da humanidade ou, se quisermos, a humanidade de cada um depende, em última instância, das aprendizagens afetuosas em que se inclui a amizade que cada um pode estruturar ao longo do seu percurso existencial. A vivência continuada e exercitada da amizade torna-nos mais humanos, com compaixão pelos outros. Sim, porque a paixão implica sempre o outro ou com outro.

Como diz Vinicius de Morais, num texto magnífico, não fazemos amigos, reconhecemo-los. Os amigos não são fazíveis. Reconhecemo-los e eles reconhecem-nos. Todos já experimentamos num grupo de pessoas, espontaneamente, simpatizarmos com esta pessoa e embirrarmos com outra. Curiosamente, temos o mesmo nível de conhecimento de ambos. Por que razão será que isto sucede?

É interessante verificar que não se trata de nenhum mistério, nem de um poder esotérico. Aquela pessoa concreta apresenta um conjunto de variáveis comunicacionais que os nossos órgãos dos sentidos percecionaram e, a partir daí, construíram um perfil que “encaixa”, ou não, nos padrões históricos pré-concebidos. Dito de outra forma, cada um tem em carteira vivências estruturadas (vividas) com cores, aromas, olhares, sonoridades, atitudes, gestos, comportamentos; ainda que sem termos propriamente clareza de consciência, encontramos nessa(s) pessoa(s) similitudes com esses arquivos, o que desencadeia espontaneamente uma construção impressiva primária. Esse constructo, com a continuidade da convivência, se isso ocorrer, vai-se adensando, positivamente ou negativamente, e assim cresce uma relação que vai subindo patamares de intimidade ou, pelo contrário, um progressivo afastamento e esvaziamento relacional.

São as relações com os nossos mais próximos, mãe, pais e outros familiares, que nos “ensinam “a ter confiança numa pessoa e a desconfiar de outra, em fases do nosso desenvolvimento, desde os nossos primeiros meses de vida, até à reatualização e consolidação dessas construções ideatórias, na adolescência. Aprendemos a rir, a confiar, a divertir-nos, a querer estar mais vezes com aquelas pessoas ou, antes pelo contrário, a esconder, a desconfiar, a fugir, a chorar, etc. Quando começamos a sair de casa, iniciamos uma interação com colegas, levando connosco o arsenal de aprendizagens que fizemos em casa. Os vínculos que estruturamos, particularmente com as pessoas significativas, designadamente os nossos pais e outros familiares, são os únicos modelos que conhecemos que se vão constituir como que modelos base, referência para a construção das nossas relações com os coleguinhas da escola e de outros grupos nos quais estivermos inseridos. Através de um conjunto multifatorial de interações com os outros e os referenciais de cada um, vão-se constituindo vínculos de uma grande diversidade e intensidade, construindo patamares com escalonamentos diferentes de afeto.

Vamos alargando as experiências e ao mesmo tempo construindo mais vínculos de elevada diversidade e complexidade.

A amizade é dos vínculos mais significativos que podemos estabelecer no nosso processo existencial. Saber que podemos contar com o apoio de alguém, ter a certeza de que alguém nos escuta e gosta de nós, como nós somos e nos aceita assim, é uma “magia” sem justificações nem explicações. É de dentro, com uma complexidade de emoções e de afetos, por vezes, sem uma lógica cognitiva gramatical. Será, possivelmente, outra gramática, porque outra lógica.
Há, assim, uma reciprocidade gratuita, não apenas no compartilhar de histórias, segredos e confidências, mas a certeza da partilha da alegria, o abraço na partida ou na chegada e a proximidade de um ombro que nos escuta na derrota.

Se a amizade assume uma grande importância socializante na infância, numa aprendizagem em pares pequeninos de iguais, nas aprendizagens instrumentais simples e complexas, na adolescência, adquire uma dimensão mais autonómica, no processo de afastamento do grupo familiar e da descoberta de quem se é e de quem não queremos ser. Até aqui, estávamos basicamente inseridos em dois grupos, vestíamos duas camisolas – a da família e a da escola. Agora, na adolescência, vamos ensaiar uma multiplicidade de papéis, numa participação em grupos de vivências diversas (culturais, recreativas, solidárias, políticas, religiosas, etc.). Esta fase quase tumultuosa e, aparentemente, anárquica, constrói determinantes da nossa saúde física e mental. Passamos, assim, a ser capazes de desempenhar vários papéis sociais e os nossos amigos dos diferentes grupos contribuíram para a construção da nossa identidade, autoconceito e a ideia dinâmica que temos de nós próprios, bem assim como os sentimentos de pertença, agora alargado a vários grupos.
Na idade adulta, permanecem os amigos da escola, da faculdade ou do trabalho. Estamos menos vezes com eles, falamos com menos frequência. A atribuição de papéis e os afazeres tolhem ou diminuem de uma forma drástica o tempo que dispensamos aos amigos, mas mantêm a sua marca indelével e a sua importância histórica. Continuam lá porque são importantes.

O papel da amizade como fator protetor da depressão, do suicídio, da ansiedade e das psicoses. Os nossos amigos percecionam e detetam muito rapidamente que não estamos ou não andamos bem e, ao comunicarmos com eles, a importância das coisas altera-se e as construções mentais reequacionam-se de outros modos mais saudáveis. No âmbito da saúde mental, pode mesmo dizer-se que uma pessoa sem amigos tem elevado risco de adoecer, particularmente, de psicose ou de depressão e, se a isso somar a falta de compromisso social, o risco ultrapassa a barreira dos 70%.

Mas a amizade também faz bem à saúde física, seja nas doenças degenerativas, como nas demências seja à nossa imunocompetência. O bom humor, as histórias que trocamos, as pessoas que lembramos, as memórias que vamos buscar, o tempo que nunca perdemos com os nossos amigos.

Os nossos amigos preocupam-se connosco, porque veem-se ao espelho, através de nós, e, então, estimulam-nos nos hábitos de vida saudáveis, na alimentação ou no exercício físico, nos aspetos culturais, ideológicos ou filosóficos, ajudam-nos a elevar a autoestima e o nosso bem-estar.

Ana Lila Lejarraga (2010): A noção de amizade em Freud e Winnicott, Natureza Humana 12(1): 085-104, Rio de Janeiro
https://www.psicologiafree.com/curiosidades/amizade-importancia-psicologica-e-caracteristicas/
https://psicologiaacessivel.net/2017/07/22/a-funcao-psicologica-da-amizade/

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